terça-feira, 1 de setembro de 2015

Com a palavra, Gigi Damiani

O pintor de cenários Gigi Damiani (1876-1953), de origem italiana, iniciou sua militância anarquista ainda no seu país de origem.
Chegou ao Brasil entre 1889/1890, juntamente com Giovanni Rossi (1856-1943) e outros imigrantes para fundar a Colônia Cecília (um projeto experimental de convivência comunitária, orientado pelos princípios do socialismo libertário, que tinha como objetivo comprovar a praticabilidade do anarquismo), no município de Palmeira, estado do Paraná. A Colônia Cecília existiu entre 1890-1894.
Após a sua passagem pela Colônia Cecília, Gigi Damiani tornou-se diretor do jornal Il Lavotero (Paraná, 1893) e colaborou com o jornal paulista Il Risveglio, periódico que tinha como subtítulo: “Organo Del Partito Anarchico”. O que obviamente não se tratava de um partido eleitoral ou parlamentar, e sim de um grupo de ação organizada, dentro da visão de atuação anarquista segundo militantes clássicos como Mikhail Bakunin e Errico Malatesta.
Damiani ainda contribuiu com as seguintes publicações: O Despertar (Curitiba, 1904) e La Battaglia (São Paulo, 1904, do qual chegou a ser diretor em 1912). Em 1908, mudou-se para São Paulo e integrou o grupo redator do jornal A Terra Livre. Após o final do jornal La Barricata (1913), Gigi Damiani colaborou com o jornal anarquista A Plebe (São Paulo, 1917), que chegou a ser diário. Participou do Comitê de Defesa Proletária da Greve Geral de 1917, na cidade de São Paulo, e pelo seu envolvimento com as causas operárias acabou sendo preso e expulso do Brasil em 1919. De volta à Itália, continuou a sua militância, ao lado de anarquistas como Errico Malatesta e Luigi Fabbri, até os seus últimos dias publicando os jornais Fede, Guerra Sociale e Umanitá Nova (semanário que existe até os dias de hoje), do qual chegou a ser diretor.
Nesse texto que agora resgatamos, Gigi Damiani escreve com a maturidade de seus 70 anos de idade, e com a experiência de mais de cinquenta anos dedicados à militância anarquista. Fala sobre a sua visão de anarquismo, completamente abrangente e contrária a qualquer sectarismo, que muito vai ao encontro do anarquismo difundido pelo Núcleo de Estudos Libertários Carlo Aldegheri (NELCA).
Esperamos que gostem do texto e qualquer dúvida ou crítica, por gentileza, entrem em contato conosco, ok?



“Anarquistas & Anarquismo”

O ponto de vista comum em torno do qual todos os anarquistas estão de acordo, porque reagrupa todas as tendências do anarquismo, por mais variadas que sejam, é aquele que conduz à mesma meta e que se caracteriza no fato de se manter o movimento anárquico com uma feição que o distingue de todos os outros movimentos político-sociais: a concepção de um futuro para a humanidade que exclua todo princípio de autoridade, de domínio e de exploração do homem pelo homem.

O anarquismo pode ter tendência individualista, comunista e genericamente socialista; cristão primitivista; referir-se ao marxismo da primeira hora; ser ativista, revolucionário, educacionista; pode aceitar ou repelir o fator violência, especializar-se no maltusianismo ou no vegetarianismo; mas no seu complexo tende a uma única finalidade: a independência moral e física do indivíduo, reforçada e não diminuída pela prática da solidariedade entre todos os seres humanos, próximos ou distantes.

O anarquismo pode ser filosofia e ciência político-econômica, sem cair no dogmatismo; simples especulação idealista ou fundamentalmente prático em suas atitudes fora de qualquer ação impositiva; pode apegar-se ao materialismo histórico ou apelar para as forças morais e considerar o sentimento como fator mais eficaz para libertar o homem da incompreensão em que se debate; pode dizer-se ateu, agnóstico ou divagar em hipóteses espiritualistas; mas conserva a sua idoneidade quanto a necessidade de combater todo e qualquer princípio de idolatria estatal, conformista e de monopólio econômico. É antiautoritário e antitotalitário em todas as circunstâncias.

A perene vitalidade do anarquismo e a sua constante atualidade, critica e impulsionadora, deriva justamente das suas múltiplas manifestações sempre atuais nos diversos meios ambientes em que a sua propaganda se desenvolve.

O anarquismo propõe, não impõe; e na variedade das suas exteriorizações do pensamento, de critica e de ação canaliza todas as diversas, mas não inimigas, modalidades para o mesmo fim; aquele em que a anarquia se divisa fundindo todas as liberdades em um cadinho único, no fundo do qual se queimam todos os prejuízos da velha estrutura econômica e social que não pode reger-se sem a prática da exploração do homem pelo homem e que assenta os seus pilares na escravidão e na ignorância.


# Por Gigi Damiani, publicado no periódico anarquista A Plebe (São Paulo) em 15 de Dezembro de 1947, Número 11, Ano 31 (Nova Fase). Posteriormente incluído no livro "Anarquismo Roteiro De Libertação Social" de Edgard Leuenroth, Editora Mundo Livre (Rio de Janeiro), Agosto de 1963, primeira edição. Segunda edição pela Editora Achiamé em colaboração com o Centro de Cultura Social de São Paulo, em 2007.

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Definindo Atitudes



Após as jornadas de junho do ano passado (como ficaram conhecidas), vários jovens passaram a se interessar pelo anarquismo, especialmente influenciados pela forma que os meios de comunicação de massa moldavam a ideologia e ação libertária.
A enorme despolitização que existe em meio a juventude e a população em geral (que foi um fator preponderante para o esvaziamento das jornadas de junho de 2013) somada a exposição tendenciosa dos órgãos de informação sobre as manifestações populares e, por conseqüência, sobre o próprio anarquismo, tem influenciado uma nova geração de jovens ativistas que parecem ainda não terem se encontrado em meios as inúmeras pautas e reivindicações que permearam as mobilizações do ano passado.
Um fenômeno que fazia um bom tempo que não se via, por exemplo, era um jovem se dizer “anarco-comunista” e divulgar um texto com um símbolo anarquista de um lado e do outro a foice e o martelo, ignorando, que o anarco-comunismo (ou comunismo anarquista, ou ainda comunismo libertário) não se trata da junção de anarquismo com comunismo (autoritário, Estatal, entenda-se) e sim de uma vertente já clássica do próprio anarquismo. Ou seja, pode-se dizer que o anarco-comunismo é um sinônimo do anarquismo e que pouco tem com o comunismo ortodoxo e autoritário.
Acreditamos que a melhor forma para se compreender o que vem a ser o anarquismo e o comunismo seja estudando e conhecendo os intensos debates entre Mikhail Bakunin e Karl Marx.
O NELCA numa tentativa de trazer esse debate para mais perto de nossa realidade e aproveitar para continuar resgatando a memória do anarquismo no Brasil, traz nessa publicação três textos clássicos, sobre os reflexos da revolução russa no Brasil, que colaboram para definir o que vem a ser o anarquismo e o comunismo, quais são suas convergências e divergências.
Antes de se apresentar os textos em si, é importante que se registre que os anarquistas no Brasil, já faziam campanhas nos meios trabalhadores em prol dos revolucionários russos desde o longínquo ano de 1904.
O primeiro texto que apresentamos nessa seleção, foi publicado no periódico anarquista “A Plebe” (São Paulo), em 1920. Seu autor Florentino de Carvalho (cujo nome real era Primitivo Raymundo Soares), juntamente com Manoel Campos e outros anarquistas, foi dos primeiros a questionar os rumos da revolução russa no Brasil.
Nesse momento questionar a revolução russa era correr o grande risco de ser taxado até por alguns de seus próprios companheiros de contra-revolucionário, visto que acreditava-se que a Rússia estava vivenciando uma revolução libertária. Vale lembrar a dificuldade de circulação das informações nessa época, e que alguns jornais comerciais desse período ao noticiar os acontecimentos da revolução russa estampavam manchetes na primeira página com os dizeres “Anarquia na Rússia” e outros slogans similares, que colaboravam para uma confusão generalizada, não tão diferente do que (em alguns casos), acontece hoje em dia. 
Mesmo dentro desse contexto social, nesse artigo, Florentino de Carvalho diferencia formidavelmente anarquismo de socialismo de Estado, afirmando que a revolução na Rússia construiu uma nova república burguesa e que o povo continuava vivendo sob o regime do patronato, do salariato e do Estado.
Reforçando o fato de que a ditadura do proletariado, não passa de uma ditadura dos dirigentes do partido sobre toda a sociedade e que os anarquistas eram, de fato, os verdadeiros defensores da revolução russa, defensores do povo russo contra os seus tiranos externos (Estados internacionais capitalistas) e internos (Partido Comunista).
Uma análise no mínimo extremamente lúcida, corajosa e visionária para o distante ano de 1920. Em sua reflexão, Florentino de Carvalho também afirma que a intensa propaganda do bolchevismo está despertando entusiasmos mesmo a muitos anarquistas, fazendo-os esquecer de seus ideais libertários, o que nos leva ao segundo texto. 
O segundo texto foi escrito pelo anarquista italiano Oreste Ristori, que iniciou sua militância ainda muito jovem, tendo passado pela França, Espanha, Argentina e Uruguai, antes de fixar residência em São Paulo. Esse texto foi retirado do primeiro número da revista “Movimento Communista” (Rio de Janeiro) de 1922, que foi a primeira publicação do Partido Comunista Brasileiro (PCB).
Oreste Ristori nesse texto demonstra toda sua empolgação com os acontecimentos da revolução russa, defendendo-a e ao mesmo tempo atacando os seus antigos companheiros anarquistas. Chega inclusive a afirmar que “a ditadura é como a cabeça e o facho da revolução”.
Com uma escrita sarcástica, ele afirma num tom bastante irônico que se os anarquistas se colocam contra o poder autoritário, logo também deveriam se colocar contra as revoluções, contra a supressão do Estado burguês, contra a abolição da propriedade privada, a greve violenta e a boicotagem, pois todas seriam formas de “um poder autoritário”.
Oreste Ristori que nesse texto chama os anarquistas de anti-ditadores (poderíamos, então, classificar Ristori como um pró-ditador?), confunde (propositalmente) autoritarismo com autoridade.
Os anarquistas entendem autoritarismo como um sinônimo de opressão e despotismo. Por outro lado, o termo autoridade (também entendido como capacidade, conhecimento e, inclusive, força da natureza), era aceito até por Mikhail Bakunin, que não contestava a autoridade da natureza, de suas leis e da vida, que são reconhecidas por todos (e não são meras imposições do Estado ou da Igreja) e, portanto, são legítimas. Assim como a autoridade do conhecimento, também reconhecida pelos anarquistas.
Da mesma forma como os anarquistas também entendem como legítimo, quando uma classe oprimida se levanta contra o seu opressor e usa todos os meios ao seu alcance para suprimir essa opressão. Por isso os anarquistas são contra a autoridade de uma ditadura, mas não contra a autoridade de uma revolução popular (parafraseando Ristori, que em seu artigo, considera tal atitude uma incoerência).
Sendo Oreste Ristori um militante antigo e culto, nos parece que nesse texto, movido por sua empolgação com a experiência da revolução russa, ele tenha sido pouco honesto em seus argumentos. O que de certa forma, não é grande surpresa, uma vez que ele já havia se afastado da militância anarquista ainda no final de 1911.
O terceiro e último texto, é uma resposta ao artigo de Oreste Ristori, e foi publicado no periódico anarquista “Renovação” (Rio de Janeiro), também em 1922.
O texto está assinado pelo pseudônimo de Karis Takos e, de uma forma mais simples, ele sustenta argumentos semelhantes aos de Florentino de Carvalho.
Karis Takos colocando em dúvida a honestidade dos argumentos de Oreste Ristori, indaga: “Porque querer confundir o que é inconfundível?”. Reforçando que a ditadura é o privilégio da autoridade baseada em forças cegas, manejadas pelos que detêm o poder. Enquanto as sublevações mais ou menos violentas, são a conseqüência imediata da imperfeição do estado social. E vai além: “Afirmar, como Ristori, que todos os procedimentos são essencialmente burgueses, intrinsecamente autoritários nas lutas contra a tirania organizada, é tanto como declarar-se anti-anarquista, e muito mais, repudiar como extravagantes os princípios essenciais da lógica anarquista”.
Enfim, lendo esses textos que debatem a experiência da revolução russa no Brasil, podemos concluir facilmente que o que separa os anarquistas dos comunistas são seus princípios e métodos de ação. Enquanto os comunistas defendem e justificam a todo custo os métodos autoritários utilizados contra a população (não contra os opressores), os anarquistas afirmam categoricamente que o autoritarismo e a centralização do poder vão gerar um novo sistema de opressão, até maior que o antigo regime.
Essas são diferenças irreconciliáveis a nosso ver. É preciso assumir posturas e definir atitudes, como diziam os anarquistas no Brasil, nos anos 20. E você leitor ? De que lado você está ?

Nós estamos do mesmo lado que Florentino de Carvalho quando ele diz: “Nesta emergência continuaremos a ser tolerantes com todos aqueles que não pensem como nós, mas permaneceremos intransigentes nos nossos princípios que julgamos insuperáveis. Propague quem quer que seja as suas revoluções de tendências ditatoriais ou autoritárias, nós propagaremos única e exclusivamente a revolução proletária ou social, para estabelecer os princípios anarquistas”. Boa leitura & reflexão !!!




Em Torno Da Revolução Russa

Somos dos primeiros em reconhecer e admirar o gigantesco esforço do povo russo realizando a maior das revoluções que a história registra. Somos dos primeiros a constatar as altas qualidades dessa raça sensível, entusiasta, idealista que com seu sangue generoso abalou os alicerces da sociedade burguesa e despótica, despertando em todos os povos a consciência revolucionária e a confiança na possibilidade da realização dos modernos princípios sociais.
A propriedade, o Estado burguês, a Igreja estão, por isso, em estado periclitante e a emancipação dos oprimidos parece estar iminente. Por isso combatemos com todas as nossas forças a agressão armada da burguesia germânica e a dos Estados aliados contra os revolucionários russos para esmagá-los e, hoje, continuamos nessa mesma atitude com o fim: de que a revolução social provoque por todo o mundo a derrocada do capitalismo e da autoridade.
Em contraposição as notícias tendenciosas propagadas pelos órgãos burgueses de publicidade, nós procuramos restabelecer a verdade e levar ao conhecimento de todos os benefícios da revolução, principalmente as liberdades e os direitos obtidos pelo proletariado, propagando mesmo alguns dos seus princípios como aquele segundo o qual “quem não trabalha não come”, princípio que não sintetiza completamente a nossa doutrina, mas é de excelente resultado pela facilidade com que as massas o compreendem.
Com o andar do tempo, porém, fomos adquirindo notícias diretas, insuspeitas, estudamos as obras dos pronomes do bolchevismo, publicadas após a revolução, acompanhamos a evolução do regime dos sovietes e chegamos à conclusão de que na Rússia se havia estabelecido uma república sob as bases do socialismo de Estado: que os elementos estranhos ao partido bolchevista haviam sido afastados de todas as instituições públicas; proclamando-se a ditadura do partido dominante; que os adversários da ditadura bolchevista foram perseguidos e que essa perseguição foi movida com verdadeira sanha, principalmente contra os anarquistas porque estes eram os que ofereciam maior perigo contra o Estado maximalista, perseguição que chegou a provocar protestos até por partes de vários funcionários de mais destaque: começamos a ver na república dos sovietes russos um perigo contra as liberdades conquistadas, contra os benéficos resultados da revolução.
Conhecedores da doutrina marxista, da democracia socialista, tínhamos a certeza de que se elementos verdadeiramente revolucionários ou libertários não tivessem possibilidades de conter a corrente autoritária, aquilo degeneraria numa nova república burguesa.
E, de fato, é o que está acontecendo. A propriedade está sendo monopolizada pelo Estado e, de contrabando, os industriais, os comerciantes e os agricultores, pequenos proprietários estão formando uma nova burguesia, antes de ter o governo soviético destruído o que já existia.
Continua, portanto, o proletariado sob o regime do patronato, do salariato, do Estado.
Em vista dos males sociais que ainda persistem ou surgem na Rússia e certos de que a intensa propaganda do bolchevismo está prendendo a atenção de todo o mundo, despertando entusiasmos, fazendo esquecer, mesmo a muitos anarquistas, os seus ideais libertários, chegamos a conclusão de que o bolchevismo vinha prejudicando, assassinando – permitam o termo – a grande obra da revolução social emancipadora.
O bolchevismo marxista baseia-se no princípio da autoridade, estabelece que a propriedade deve ser administrada pelo Estado, proclama a ditadura proletária, que na prática não passa de ditadura dos dirigentes do partido, conserva o regime do salário e muitas outras modalidades burguesas que deixo de mencionar por falta de espaço e porque não são de importância máxima.
Todos estes princípios são anti-anarquistas, liberticidas e merecem a reprovação de todos os homens livres.
Pois bem, com estes princípios e com o pretexto da reação externa, os ditadores do Estado bolchevista, que nos primórdios do regime constituíam um governo fraco, foram pouco a pouco, fortalecendo-se, suprimindo a autonomia dos sovietes locais e assegurando a autoridade cada dia mais absoluta do poder executivo.
Nestas circunstâncias, julgamos oportuno e necessário, ao mesmo tempo que combatemos a intervenção dos aliados na Rússia por o povo de sobreaviso contra as tendências reacionárias e despóticas dos governantes da república russa.
Para nós a intervenção dos aliados na vida interna do povo russo é um grande perigo para a revolução, mas o avanço ditatorial reacionário dos bolchevistas é um perigo porque a guerra externa impele o povo à união unânime para a resistência ao passo que a reação interna, partindo dos elementos considerados revolucionários, partindo do Estado constituído é um perigo maior, pois que este não permite com as suas forças armadas os seus elementos compreensivos que o povo se organize e se prepare para fazer respeitar os seus direitos.
Em rigor o povo da Rússia não está armado como alguém afirmou: o governo teve o cuidado de desarmar todos os seus adversários e submetê-los a uma severa vigilância e a uma perseguição metódica, para cujo trabalho dispõe de uma burocracia policial incomparável.
Nós somos, portanto, os verdadeiros defensores da revolução russa, defensores do povo russo contra os seus tiranos externos e internos.
Ao contrário, os que defendem o regime da ditadura maximalista da Rússia contribuem para que o Estado se fortaleça e esmague com mais facilidade a agitação revolucionária de tendências libertárias e favorecem ao mesmo tempo a burguesia internacional porque aburguesado o regime político moscovita, ele fará causa comum com os outros Estados burgueses na sua repressão contra as agitações ou revoluções proletárias.
Finalmente, com relação à Terceira Internacional de Moscou, temos a fazer conhecer aos que ainda ignoram as suas bases que ela aceita os princípios do socialismo de Estado, acima mencionado e admite, ainda como meio de luta a ação eleitoral, que aliás também está em pugna contra os nossos meios de luta francamente revolucionária.
Tornamos públicas estas considerações afim de que a nossa atitude relativamente ao movimento revolucionário russo seja esclarecida e não dê lugar a erradas ou sofismadas interpretações.
Nesta emergência continuaremos a ser tolerantes com todos aqueles que não pensem como nós, mas permaneceremos intransigentes nos nossos princípios que julgamos insuperáveis.
Propague quem quer que seja as suas revoluções de tendências ditatoriais ou autoritárias, nós propagaremos única e exclusivamente a revolução proletária ou social, para estabelecer os princípios anarquistas.

# Por Florentino de Carvalho, publicado no periódico “A Plebe” (São Paulo), em 30 de Dezembro de 1920, Número 98, página 2.





O ‘Non Expedit’ do Anarquismo Contra a Ditadura

Acompanhando o apaixonado debate que se está desenvolvendo em quase todos os periódicos anárquicos de ambos os continentes sobre o tema da “ditadura do proletariado”, temos tido a oportunidade de conhecer a opinião, a este respeito, de muitos apreciados companheiros, entre os quais de encontram: Sebastian Faure, Malatesta, Fabri, Bertoni, e dói-nos ter de confessar que o único argumento básico, em que se acastela toda a crítica dos anti-ditaduristas, consiste no seguinte: “a anarquia sendo a negação de todo o principio de autoridade, de governo, de mando, é incompatível com a ditadura proletária, que implica precisamente o exercício de um poder autoritário, e, por conseqüência, todo aquele que o aceita ou propaga não pode ser anarquista”.
O principio lógico, que se depreende de semelhante raciocínio, não poderia ser mais anti-anárquico, nem mais infantil e absurdo: “tudo aquilo que, em matéria de idéias e métodos de luta, não se compatibiliza com os princípios essências da anarquia, deve ser repelido”.
Vamos ver agora a que insensatas conclusões nos arrastaria esse principio, uma vez aplicado e estendido à todas as suas conseqüências. Eis aqui, para uso e consumo dos anti-ditadores, alguns argumentos perfeitamente iguais:
1 – A anarquia, sendo um estado de completa harmonia entre os homens, negação de todo princípio de autoridade, de governo, de mando, é incompatível com a revolução social, que implica o exercício de um poder autoritário (o poder da massa, do povo, do padre eterno ou de quem se queira), que se impõe... à força de canhão. Nada, pois, de revoluções!...
2 – A anarquia, sendo expressão da mais absoluta liberdade para todos, é incompatível com a supressão do Estado burguês, que implica um atentado de evidente violência contra a liberdade daqueles que o queiram manter. Nada, pois, de supressões do Estado burguês!...
3 – Por idênticas razões, a anarquia é incompatível com a abolição da propriedade privada, que implica um despojo forçado e uma violação à liberdade de todos aqueles que têm interesse em conservá-lo. Nada, pois expropriação!...
4 – Sempre por seus princípios essências de liberdade, a anarquia é incompatível com a greve violenta, porque implica o exercício de um poder autoritário por parte dos trabalhadores que pretendem impor a classe capitalista aumentos de salários, reduções de horários, etc., violando assim a liberdade dessa classe, que não quer que se lhe arranquem semelhantes concessões. Nada, pois de greves!...
A base dessa mesma lógica interpretativa, a anarquia é também incompatível a com a boicotagem porque esta implica exercício de autoridade, de ditadura, por parte sempre dos trabalhadores atentando contra a liberdade alheia. Há de ser, pois repelida.
Fazendo nosso o peregrino argumento dos anti-ditadores, não saberíamos se nos restaria ainda algum método de luta e um só ato da vida compatíveis com tão extravagantes “princípios essenciais” da anarquia. Nada, ninguém poderia evitar incorrer no pecado mortal da incoerência e da apostasia. Teríamos que encerrar-nos como anacoretas numa redoma de vidro, para admirar, através de suas paredes cristalinas, os reflexos resplandecentes do sublime ideal, e amarrar numa mesma sentença condenatória ao que aceita o salário e ao que o combate, ao que trabalha para perpetuar o regime capitalista e ao que se esforça para destruí-lo, numa palavra, a todos os meios possíveis de luta pela transformação do sistema social e da vida, já que todos esses meios são “essencialmente burgueses”, quer dizer, intrinsecamente “autoritários” e, como tais, incompatíveis com os princípios essenciais da anarquia.
O que temos de verdadeiramente original, de indiscutivelmente próprio, e cuja paternidade ninguém poderá disputar-nos, são as formas ideais de igualdade e de justiça em que quiséramos ver instalada a sociedade do porvir, as concepções aladas de um novo mundo sem autoridade, sem governo, sem leis, sem exércitos, sem exploração e sem lutas sangrentas pela existência, porém, a revolução que nós preconizamos “como meio” para chegar a esta meta, assim como qualquer outra das modalidades de luta que atualmente conhecemos e empregamos para abrir caminho, não a inventou Bakunin, nem Reclus, nem Malatesta. É um supremo recurso de origem puramente burguesa, tão velho quase como velho é o mundo, e que nós apenas ontem fizemos nosso e introduzimos em nosso programa, sem aplicar-lhe a menor modificação. Achamo-lo tal como soa em seu histórico significado de explosão, de violência contra todas as instituições, poderes e privilégios do Estado capitalista, sem absolutamente nos preocuparmos em saber se os efeitos destrutivos e reconstrutivos de tal desencadeamento de violência poderiam prejudicar os interesses, conculcar os direitos, atentar contra a liberdade de classes privilegiadas e daqueles que as defendam, e ser compatíveis com os princípios da anarquia. Pela mania de fazer frases vazias e cuspir sentenças absurdas não temos tampouco procurado penetrar um pouco mais fundamente na questão para compreender que afinal de contas a revolução, no sentido do emprego de um máximo de força para destruir um regime e suplantá-lo por outro, não é mais que o exercício de uma autoridade (a do povo) que se sobrepõe a das classes burguesas em sua forma mais brutal, pela destruição e pelo massacre. Em outros termos: uma ditadura (embora não se lhe dê esse nome) a base de ferro, fogo e terror.
Os anti-ditadoristas não repelem a idéia liberticida da revolução (liberticida, entende-se, para as classes burguesas), porque, apesar de toda incompatibilidade, segundo se depreende de sua frouxa lógica, com os puros princípios da anarquia, não sabem como substituí-la por outra, porém, em troca, supõem ser coerentes quando repelem a ditadura, que é como a cabeça e o facho da revolução. Ofende-os a autoridade da ditadura, não a autoridade da revolução. Eis aí a coerência!
E com tanta puerilidade nas idéias e nos argumentos, com tantos absurdos e contradições, pretendem levantar uma barreira contra a ditadura do proletariado, invocando o nome imaculado da anarquia. Bonito modo de interpretá-la! Afortunadamente, ela não será o resultado das secreções filosóficas dos que, por excessiva modéstia, pretendem manter o monopólio da verdade e do amor as idéias nem das pequenas capelas sectárias. Será, sim, o cociente de todos os esforços do mundo sabiamente disciplinados e conduzidos pelos que tenham uma visão mais ampla e profunda da realidade das coisas.

# Por Oreste Ristori, publicado no periódico “Movimento Communista” (Rio de Janeiro), Janeiro de 1922, Número 1, Ano 1, página 8.




Ditadores & Anarquistas

Também podíamos dizer anarquistas ditadores, ainda que tal termo compreenda dois extremos tão opostos. Com efeito, que abismo tão infinito de idéias, de sentimentos, de concepções sociais não separam o exercício máximo da autoridade, do seu antagônico: o de liberdade!...
Há camaradas, porém, que, apesar desta tão clara evidência, olvidam, em holocausto, a realidade dominante, a confusão que logicamente se deve estabelecer essa pretensão revolucionária de construir uma ponte que transponha esse báratro e permita à humanidade passar fraternalmente dos limites anacrônicos em que se encontra, das trevas em que se debate, aos esplendores da luz, ao reinado idealista duma vida anárquica.
A aversão que tal desacerto produz nas consciências profundamente libertárias, move nossa pena e nos impele, sem mais preâmbulos, a refutar os sofismas que Oreste Ristori emprega no seu artigo “O Não Expedit do Anarquismo Contra a Ditadura”, publicado no 1º número do “Movimento Comunista”.
Em tal tese, pretende-se comparar a pureza das intenções anárquicas com os métodos de luta defensiva que os anarquistas e os que mais diretamente sofrem as opressões sociais se vêem obrigados a praticar para não perecer na resignação duma vergonhosa escravatura.
Afirmamos, pois, e pretendemos provar, que se a ditadura é absolutamente incompatível com o ideal anarquista, não se infere de tal raciocínio que as lutas que os homens estabelecem para se defenderem dos sofrimentos que lhes causam sejam também repudiáveis. Porque querer confundir o que é inconfundível?... A ditadura, grande ou pequena, branca ou vermelha, é o privilégio da autoridade baseada em forças cegas, manejadas pelos astutos que detêm o poder...
As sublevações lógicas e contundentes, em todas as suas formas mais ou menos violentas, mais ou menos precisas ou confusas, são a conseqüência imediata de estados sociais imperfeitos.
Exercer a violência como sistema, impor a obediência a um poder constituído, não é o mesmo que exercê-la acidentalmente, como meio de defesa contra os embustes da tirania que sob diversas formas e com múltiplos nomes se entronizam nas relações humanas.
Parece-nos absurdo meter no mesmo saco as reivindicações das classes produtoras e os procedimentos capitalistas, burgueses ou parasitas. Como pode negar-se que as primeiras estão inspiradas na necessidade de defender-se de um sistema econômico de coerção e de irritante desigualdade e espoliação, para arrancar algumas melhorias de ordem moral e material às classes monopolizadoras? E como não ver, ao mesmo tempo, que os meios que estas empregam para desvirtuar e escamotear essas ínfimas conquistas proletárias são exclusivos do mais vil egoísmo conservador de privilégios, da mais maquiavélica astúcia e das forças mercenárias ou inconscientes que sustentam todo este conjunto social de antagonismos?...
Afirmar, como Ristori, que todos os procedimentos são essencialmente burgueses, intrinsecamente autoritários nas lutas relativas ou transcendentes que as ânsias de liberdade mantêm contra os da tirania organizada, é tanto como declarar-se anti-anarquista, e muito mais, repudiar como extravagantes os princípios essenciais da lógica anárquica. E, note-se, nada mais alheio de nós que o desejo de criar um dogma intangível e anatematizar os apóstatas e incoerentes, conferindo ao mesmo tempo diplomas de anarquismo, mas nem por isso vamos esquecer que o verdadeiro anarquista é o que ajusta todas as suas ações às suas palavras, inspiradas estas na mais libérrima vontade, desprezando desde logo a usura forçosa que a sociedade impõe aos que nela convivem. Não vamos, tampouco, estabelecer aqui uns “novos dez mandamentos”, fixando o que os anarquistas devem ou não devem fazer, pois temos certeza de que eles têm como objetivo supremo o desenvolvimento da sua consciência para se verem livres de toda a sugestão, de todos os preconceitos, de todo o irracionalismo que caracteriza o confusionismo de todas as políticas que tem por fundamento o modo de governar os povos para fazê-los felizes. Não obstante, queremos expor, aos que nos leiam, o nosso critério anarquista com respeito as revoluções de circunstâncias. Denominamo-las assim porque não há quem possa dizer quando e como se fará a suprema revolução, a definitiva, a que suprima duma vez os ódios seculares e torne verdadeiramente fraternal a humanidade.
Pois bem: é lógico que o anarquista seja revolucionário, se não crê na revolução próxima?... Indubitavelmente que tem que o ser, porque sabe bem que a razão não basta para destruir a força milenar que lhe impede viver livremente. Mas seu revolucionarismo se distingue dos que abraçam todos os partidos gregários.
Está mais na sua consciência que nos seus gestos violentos. O anarquista odeia a inércia e a estupidez das multidões e não se deixa influenciar por elas; mas quando estas, acossadas pela necessidade e dirigidas por redentores de boa ou má-fé se lançam à rua, pode envolver-se na contenda – não para entusiasmar-se, não para abraçar a bandeira que se arvora, não para crer no próximo triunfo da emancipação integral do homem, senão para servir de acicate, para aplaudir e ajudar todo movimento libertador e criticar acerbamente todo gesto de tirania e submissão. Enquanto a revolução se afirma, enquanto dura a luta travada, enquanto existam forças que combatam, há também certa nobreza nas atitudes dos adversários. O perigo aparece, precisamente, quando um partido começa a triunfar, quando, finalmente, se instaura um novo poder.
Então, o anarquista, que vê as novas torpezas do desenfreio autoritário e a eterna submissão da plebe tem que continuar sendo revolucionário a fortiori, e, conseqüentemente, um perseguido pelas instituições.
Chegando a esta conclusão, chegamos também a este dilema: - Ou os anarquistas ditadores crêem de boa fé na sua influência sobre a humanidade atual para fazer que viva a anarquia, não lhes deixando seu exagerado otimismo ver o atraso mental de nossos contemporâneos para poderem compreender nosso ideal, e muito menos para vivê-lo, fazendo-o carne da sua carne, ou contrariamente, são uns mistificadores, que se adaptam a triunfos efêmeros para viver mais tranqüilos e para fazer, pelo verdadeiro caminho, a felicidade universal.
De duas coisas uma: - Ou seguimos sendo refratários à incompreensão dos de cima e dos de baixo, ou seguimos sendo sonhadores, verdadeiros Quixotes da vida, ou desprezamos as vis realidades, ou seguimos sendo artistas, concebendo belamente a vida em todos os seus aspectos e vivendo-a o melhor possível, de conformidade com o nosso ideal anárquico, - ou, em contrário, devemos declarar a bancarrota do anarquismo e ao mesmo tempo a mesquinhez do nosso eu, que não quer lutar mais que pela finalidade de um triunfo que não pode ser o nosso e o de todos. Sendo assim, é lógico que adotemos uma crença, que lutemos com fé, que nos façamos soldados ou generais da nova causa, porém... poderemos continuar chamando-nos simplesmente anarquistas?
Que cada um medite sobre a transcendência de tal dilema e que cada um encontre sua resposta a tal pergunta...
Que os jovens, principalmente, tratem assim de afirmar sua consciência.

# Por Karis Takos, publicado no periódico “Renovação” (Rio de Janeiro), Março de 1922, Número 5, Ano 1, Página 77.





terça-feira, 30 de setembro de 2014

Solidariedade aos que Lutam!!!


Recentemente uma série de perseguições e represálias vem ocorrendo nos movimentos sociais em suas diferentes ações. O Núcleo de Estudos Libertários Carlo Aldegheri, reconhece a legitimidade das lutas, acreditamos que a luta por reivindicações, por melhorias, os protestos com objetivos e propostas ou mesmo ações espontâneas não são crimes, são formas d@s indivíduos e coletivos conquistarem melhorias e qualidades de vida, não apenas para o hoje, para o agora, mas para as gerações futuras também. A partir disso, publicamos comunicado enviados por companheir@s do Movimento Estudantil da FCL de Araraquara, que vem sofrendo perseguições e processos jurídicos por meio dos aparatos estatais. Segue nosso sincero voto de SOLIDARIEDADE aos companheir@s e compartilhamos aqui seu manifesto e informe sobre a situação que vem ocorrendo sobre o Movimento Estudantil de Araraquara.

COMUNICADO DO MOVIMENTO ESTUDANTIL SOBRE REPRESSÃO E PERSEGUIÇÕES POLÍTICAS

 


O movimento estudantil da UNESP-Araraquara, através de deliberação retirada em assembleia geral, construiu greve e ocupação da direção da FCL, em luta por uma universidade a serviço do povo. As ações foram realizadas em apoio à classe trabalhadora e ao estudantado das três Estaduais Paulistas, se estendendo a greve por mais de 100 dias, contra os ataques do CRUESP e do governo do Estado à Educação Pública. Em Araraquara, estes ataques se evidenciam pelos cortes de bolsas, pelas 38 expulsões da moradia estudantil, pelo reajuste salarial negado ao setor técnico-administrativo, entre inúmeros componentes que fazem parte do projeto de privatização em curso contra a educação pública, excluindo o povo pobre do acesso à universidade. Os ataques se evidenciam também pela repressão: no dia 20 de Junho de 2014, as estudantes e os estudantes que ocupavam a direção da FCL foram reintegrados violentamente por descomunal força policial (150 policiais as 4h30 da madrugada), que adentrou a ocupação munida de armamento pesado, presença da tropa de choque, realizando diversas ilegalidades (revistas ilegais, pressão psicológica, constrangimento, homofobia, agressões verbais, e a própria condução para delegacia), fazendo parte de uma série de violações de direitos empreendidas pela direção da FCL, sob tutela da REItoria. Ocorrem também os processos punitivos, como sindicâncias e processos jurídicos, que podem resultar em graves punições como explicaremos abaixo.
Passamos a Copa do Mundo, que deixou amplo legado de destruição, desalojos, desterros, prisões, tortura, repressão, e adentramos novo período de lutas, com o fortalecimento das greves nas universidades, assim como uma nova escalada repressiva. É agora, portanto, o momento de reafirmarmos nossa força, unificando os setores em luta para conquistarmos nossas reivindicações, mas para também defendermos quem luta e está passando por prisões, ameaças, assédios e demissões.
Os governos empreendem nacionalmente uma tentativa de reprimir a juventude, as trabalhadoras e os trabalhadores que saíram às ruas em junho e em 2014. No Rio de Janeiro foram 23 presos, que recentemente receberam habeas corpus, mas seguem processados; no RS demitiram um rodoviário que fez greve, já ocorreram diversas prisões arbitrárias, que vêm causando um escândalo em escala internacional, na qual as pessoas são impedidas de manifestar e são presas de maneira “preventiva”, sem provas, tendo suas casas invadidas, num estado dito democrático onde teriam o direito de expressar e praticar suas posições políticas. Percebe-se, entretanto, que a democracia é uma farsa, e atende somente aos interesses das classes dominantes. Por isso seguimos lutando contra a ofensiva dos governos em criminalizar as lutas.
No estado de São Paulo, o governo Alckmin mandou prender, num dos atos contra a Copa do Mundo, um trabalhador e estudante da USP, Fábio Hideki, com acusações forjadas, levando-o à penitenciária do Tremembé em São Paulo. Ainda hoje, está preso Rafael Braga, morador de rua e catador de lixo preso por portar Pinho Sol. Antes disso, Alckmin colocou a polícia militar para reprimir trabalhadoras, trabalhadores e manifestantes em atos e piquetes feitos para garantir o direito de greve. Além disso, 42 metroviárias/os foram demitidos por lutar por melhores condições de trabalho e transporte para a população. Demissões de caráter unicamente político.
Na greve das Estaduais Paulistas, por sua vez, que vêm resistindo bravamente, as duras investidas do governo e da reitoria incluem corte de ponto aos funcionários grevistas, tiros de bala de borracha a queima-roupa e gás lacrimogêneo! Além disso, a reitoria da USP aprovou a demissão de 1700 funcionários, aprofundando o projeto de privatização e as ofensivas contra aos trabalhadores e à educação pública. Também aprovou a desvinculação do Hospital Universitário da USP, que se configura um grande atentado à saúde pública. Os trabalhadores das estaduais lutam por seus salários, mas também contra os governos e reitorias que ferem diretamente os direitos dos trabalhadores e da população pobre. Por isso, não permitiremos a repressão a quem luta!
Em Araraquara, a repressão também já recomeça: três estudantes estão respondendo processo judicial por realizar intervenções artísticas no vão dos Centros Acadêmicos, espaço historicamente utilizado para manifestações livres, como indica a placa nos muros do local. O curioso é que neste mesmo processo, está escrito que estes tem histórico de problemas com a UNESP, e fizeram parte da ocupação da reitoria, deixando claro que a motivação destas punições tem caráter de perseguição política. Os estudantes terão de pagar individualmente um salário mínimo caso não queiram ser condenados. Além disso, as sindicâncias para punir @s estudantes que ocuparam a direção (incluindo até mesmo pessoas que não estavam presentes) tem início. Foram abertas 17 sindicâncias, correndo o risco de resultarem em expulsões da universidade, associadas a um processo civil onde nomearam, arbitrariamente, 5 nomes como líderes, sendo que não existem lideranças no movimento estudantil por ser este movimento organizado de forma horizontal, não-hierárquica, de baixo pra cima. A abertura de processos criminais também é provável, causando neste conjunto, irreparáveis danos morais, psicológicos e financeiros contra @s estudantes, que precisam de advogados, que precisam terminar o curso, e que podem receber penas graves, incluindo prisões (um desejo do diretor Cortina), retirando primariedade de réu, afetando todo o curso da vida futura. Em Rio Claro, o mesmo acontece.
Diante destes fatos, chamamos tod@s @s estudantes da FCL para comparecer ao ato em frente a Faculdade de Odontologia, segunda-feira, dia 8/09, às 13h30, onde irão ocorrer as audiências das sindicâncias, para manifestar apoio @s que lutam, e lutar contra a repressão. Onde um Estado cujas palavras de ordem são a arbitrariedade e a violência, e onde a Lei é a inconstitucionalidade, para nós, que nunca acreditamos na Justiça burguesa, o que nos fortalece é o apoio mútuo e as redes de solidariedade. É urgente nos mobilizarmos em torno de uma campanha contra a criminalização dos movimentos sociais e d@s lutadores/as em greve e ocupação pelo fim imediato de todos os processos, inquéritos, expulsões e demissões.
NENHUMA EXPULSÃO OU DEMISSÃO D@S LUTADORES DA GREVE DAS TRÊS ESTADUAIS E DA OCUPAÇÃO! BASTA DE PERSEGUIÇÕES @S QUE LUTAM! PELO FIM DOS PROCESSOS POLÍTICOS! OS ATAQUES DA REITORIA E DO GOVERNO DO ESTADO NÃO PASSARÃO! MOVIMENTO ESTUDANTIL DA FCL-ARARAQUARA






quarta-feira, 2 de julho de 2014

Drogas, prazer, liberdade & anarquismo!

No dia 28 de setembro do ano passado, ocorreu na Biblioteca Carlo Aldegheri a palestra "Drogas, Prazer, Liberdade & Anarquismo", ministrada pelo companheiro Antônio Carlos de Oliveira, membro do Centro de Cultura Social de São Paulo (CCS/SP). Abaixo segue texto descrito por aquele palestrante onde é apresentado o conteúdo daquela atividade.




DROGAS, PRAZER, LIBERDADE & ANARQUISMO[1].
Se eu quiser fumar, eu fumo / Se eu quiser beber, eu bebo / Eu pago tudo que eu consumo / Com o suor do meu emprego / Confusão eu não arrumo / Mas também não peço arrego / Eu um dia me aprumo / Pois tenho fé no meu apego” Maneiras - Zeca Pagodinho.
1               1.      Vida e Intensidade das Drogas: um depoimento pessoal de um anarquista.   
Escrever esse texto foi mais difícil que fazer a palestra com o mesmo titulo no Núcleo de Estudos Libertários Carlo Aldegheri (Guarujá - 28/9/13)[2]. Em uma palestra temos menos pessoas e as bobagens, mesmo gravadas, tem uma repercussão menor.  
Contudo, há tempos que desejo questionar algo que está muito difundido em nosso meio, a ideia de que fazer o uso de varias substâncias químicas é expressão de uma determinada forma de liberdade. Para alguns é a própria expressão do anarquismo, outros mais ingênuos acreditam que esse uso é uma forma de contestação da ordem. 
Tais reflexões são resultados dos meus 49 anos de existência, sendo 20 desses como usuário dos mais diferentes tipos de drogas, além, de uma longa busca de entendimento sobre as causas que me levaram a esse comportamento. Busca essa que sempre acompanhou minha diferente forma de viver, porém, que se torna mais critica, a partir de 1993, quando escrevi meu primeiro projeto pedagógico de pesquisa sobre o tema, para o CEFAM (Centro de formação do magistério), e em 1995 para o centro de Convivência (PUC/SP). No entanto, a reflexão se aprofunda quando assumi a perda de controle sobre minha própria vida, e fui para um grupo de autoajuda em 1998, portanto, sou um dependente químico em recuperação e tento ser um estudioso sobre o tema. Meu pai era alcoólatra e com o desenvolvimento da doença se tornou uma pessoa bastante violenta, assim, somada a experiência familiar meu tempo de contato com essa situação é maior.
Infelizmente, em nosso meio alguns tem muita pressa em tomar uma posição sem conhecer o todo, limitando-se a análise das partes, assim, sugiro que leiam o texto todo e mantenham a mente aberta. Outra característica comum, é que aqueles que se posicionam e desagradam são execrados, viram traidores ou inimigos mortais. Entendo essa limitação ética, solidária e intelectual dos que julgam, não gostaria de ser um desses excluídos, mas se assim for, que seja. Nunca quis ser ou fazer parte da maioria. Essa é uma das mais fortes razões desse texto ser tão difícil!

2.Essas ideias já foram questionadas
"As divergências entre libertários tem que ser cordiais. Cada militante deve ter a sua própria personalidade, apresentar os problemas como melhor interpretar, mas disposto sempre a corrigir erros e retificar sempre que se demonstrar o equivoco e a falta de razão. O não compartilhar da opinião dos demais, não estar de acordo com fulano ou beltrano não justificas tirar o corpo e não contribuir com a parte que lhe corresponde na hora de meter o ombro na obra comum" (Fragua Social, nº 24, out./1980 de Jose Hiraldo).

Durante a palestra citada, um companheiro que muito estimo disse que minha fala parecia com a dos militantes do século passado que faziam campanha contra as bebidas alcoólicas, respondi que de certa forma sim. Eu, talvez mais que muitos, posso por experiência pessoal, falar dos malefícios que o uso abusivo e indevido de várias substâncias químicas podem causar. Também reafirmei que não estava ali falando contra ninguém ou nenhuma substância química em particular. Compreendo que dentro das garrafas de bebida alcoólica não vem violência, a violência está no indivíduo que a usa, e que por razões de sua história pessoal ou contexto se torna violento. Ademais, o dono do bar, da padaria, da farmácia, em muitos casos, dependendo do contexto, são tão traficantes quanto aqueles que ficam escondidos, nas quebradas da vida, vendendo sem marketing e a “proteção” da polícia, seus “bagulhos”.   
Uma garota que fez parte da Marcha da Maconha no litoral paulista disse que minha fala era igual a da Globo, fiquei com uma vontade enorme de rasgar o verbo, mas isso tudo é tão desnecessário, não estava lá para brigar com ninguém. Inclusive quem acredita nos efeitos benéficos da maconha, coisa que em parte posso até não discordar, afinal, pesquisas demonstram que o uso medicinal da maconha para doentes crônicos trás vários benefícios, que uma taça de vinho ou um copo de cerveja não são de todo prejudiciais, mas, será que isso se aplica para todos os que estão agora experimentando, ou os que fazem o uso diário?
Ninguém, absolutamente ninguém nasce sabendo quem será ou não um dependente químico. Mesmo os filhos de dependentes químicos que tem uma diferença genética que os torna mais suscetíveis não estão obrigatoriamente fadados a serem portadores dessa doença chamado alcoolismo ou “adicção”[3], depende de outros fatores e do contexto de suas vidas. Como saber quem se tornará um doente? O que nos leva a ficar doente? Penso sempre na brincadeira da roleta russa, um revolver, seis espaços, uma bala, puxa o gatilho, pode não ser na primeira, talvez nem na segunda, mas em algum momento, BUM! Nos tornamos um dependente químico, um doente.
Curioso faço uso de diferentes substâncias desde 1980, e as músicas consideradas de contestação e que fazem apologia das drogas, como as de Raul Seixas, ou do grupo de Rap “De menos crime”, com a musica “Fogo na bomba”, Racionais MC, em várias de suas músicas, Marcelo D2 em outras, exaltam a maconha, mas ao mesmo tempo, alertam “cuidado que ela pode te dominar!”, “você tem de fazer a cabeça não ela te fazer a cabeça”.
Mesmo os que acreditam no carácter benéfico dessas substâncias deveriam ter em mente que nenhum ser humano é igual a outro e que aquilo que não me faz mal talvez faça para outra pessoa, assim associado a toda luta pela descriminalização ou liberação deveria estar também a luta pelos esclarecimentos necessários quanto aos possíveis prejuízos que podem trazer a muitos.
Quanto a minha fala ser semelhante a da Globo, mais que isso o importante são meus atos. Moro no extremo da Zona Leste, PQ S. Rafael, distrito de São Matheus, minha casa fica em frente a um córrego poluído e fétido. Logo depois uma favela, hoje urbanizada, que existe há tanto tempo, ou mais que eu de vida. Trabalho em uma escola estadual que fica encravada no meio de outra favela próxima de casa; há tempos tive condições de sair desse lugar, de trabalhar em uma escola melhor localizada, mas..... fiz uma opção na vida. Ficar entre aqueles com que me identifico, viver onde minha família viveu, colocar meus parcos recursos a sua disposição, a disposição de uma causa.

3. Algumas considerações sobre o tema drogas
Droga é toda substância química que, introduzida no organismo, provoca alterações no sistema nervoso central. Há vários tipos de drogas e aqui não nos interessa se são lícitas ou ilícitas. As características do indivíduo, a qualidade da droga, a expectativa sobre seus possíveis efeitos e as circunstâncias em que ocorre o consumo implicam situações diferentes. Por isso que é importante ressaltar que, para ser mais bem compreendido, o tema drogas precisa ser abordado considerando-se três fatores: o indivíduo, o produto e o contexto sociocultural. Há sempre um indivíduo que tem acesso a um produto em um contexto sociocultural qualquer.
Realmente existe prazer no uso de drogas. O problema está na memória, que, com o tempo, vai nos traindo, até chegarmos a uma doença incurável, que afeta o físico, o mental. Não negamos o prazer que se obtém com o uso de drogas, porém, o consideramos imediatista, e o preço a ser pago por ele extremamente alto
Fala-se em predisposição do indivíduo, que seria determinada por sua história familiar e individual; porém, é necessário levar em conta o efeito atrativo do prazer e o significado que ele assume no universo do indivíduo, ou seja, o espaço que preenche e as expectativas que atende.
A tolerância se estabelece lentamente; o organismo permanece sensível ao excesso de droga. Isso significa que o uso repetido de determinada droga faz com que seja necessário usar doses cada vez maiores para obter os mesmos efeitos experimentados.
Nem todos fazem uso abusivo das drogas. Há os experimentadores, que se limita a poucas vezes; aqueles que fazem uso recreativo ocasional, isto é, indivíduos que utilizam um ou vários produtos de maneira esporádica; aqueles que fazem uso habitual ou funcional, ou seja, aqueles que reiteram o uso do produto, o qual, embora controlado, já ocasiona ruptura escolar, profissional, familiar e afetiva, mesmo quando a integração social (funcional) é preservada. O dependente disfuncional (toxicomaníaco) é aquele que estabelece uma relação de exclusividade com a droga, quando ela passa a dominar toda a sua vida e o torna um dependente químico.  
Algumas das motivações podem ser: a curiosidade, qualidade natural do ser humano; os grupos ou movimentos culturais, em virtude da identificação com determinados modelos de comportamento; a fome, a falta de perspectivas, as dificuldades de relacionamento, a saúde, as dificuldades de acesso à informação e à formação cultural; a já citada busca do prazer imediato/intenso, ou seja, o desejo de chegar ao êxtase sem esforço da consciência.
A questão é que a memória registra o primeiro prazer. O uso contínuo é a busca da repetição desse prazer, que ficou registrado na memória, mas que não ocorrerá mais da mesma forma. A partir daí, vai-se desenvolvendo a doença.
dependência não se dá somente em relação às drogas, mas também em relação às pessoas, aos objetos, às situações etc. e pode ser física (adaptação do organismo ao uso de determinada droga) ou psicológica (impulso para continuar usando a droga, [compulsão], para reexperimentar o prazer). Apesar de incurável, essa doença tem um tratamento, que pressupõe total abstinência das drogas e mudança radical na qualidade de vida.
Entre outros aspectos do processo de recuperação cito, como sugerem nos grupos de auto ajuda “abandonar as velhas companhias e os velhos lugares” esses estão muito associado a nossa vida durante o consumo dessas substancias, dentro do possível “reparar os erros que cometemos”,  etc.

4.Nosso passado mais distante
Pensemos. Como na virada pro século XX os jovens do passado tinham contato ou chegavam ao anarquismo? Pelo que vemos na literatura e nos relatos que nos contaram os companheiros (as) mais velhos (as), eles chegavam pela família que os levava ou através das juventudes libertárias que eram espaços de organização dos jovens.
Muitos desses pais e mães eram os mesmos homens e mulheres que faziam a campanha contra o tabaco ou as bebidas alcoólicas, por outro lado, ainda que se tomasse um copo de vinho isso não era fora de um contexto social, ou antes, das refeições. Com certeza havia os “borrachon”, dependentes das bebidas alcoólicas e até de outras substâncias no meio anarquista, mas o contexto, as relações interpessoais e a forma de organização devia proporcionar uma forma mais protetora e coerente de lidar com o problema.
Lembremos que no Brasil durante muito tempo uma das parcelas mais expressivas do movimento libertário era de cunho anarcosindicalista, contra esses a repressão estatal das várias ditaduras foi mais intensa. Sem contar os diversos outros problemas que o movimento enfrentou e que contribuiu para que o movimento perdesse muito da combatividade das décadas anteriores.

4.1.Década de 1960: É proibido proibir!
Posso estar falando uma besteira gigantesca, mas em nosso caso particular, acredito que começa a ocorrer uma mudança significativa na década de 1960 com os movimentos de contra-cultura, a agitação dos estudantes e trabalhadores franceses, a resistência a guerra do Vietnã, o movimento hippie. Com isso inauguram uma nova e forte onda de resistência a ordem estabelecida, no bojo dessa situação ocorrem outras mudanças também de contestação à forma de organização familiar, aos papéis pré-estabelecidos entre homens e mulheres, à educação reprodutora do status quo, a forma de produção em massa e a destruição do meio ambiente, as inúmeras ditaduras na America Latina, Central, etc. 
Entre outras coisas os movimentos de contra-cultura trazem a experimentação de várias substâncias como forma de contestação da ordem. Como exemplo podemos citar os integrantes da banda The Doors, principalmente seu vocalista – Jim Morrisson, que usavam essas substâncias para “abrir as portas da percepção”. Muitas foram as figuras de grande expressão na música, literatura, cinema etc que morreram de overdose “meus heróis morreram de overdose, meus inimigos estão no poder” Cazuza. 
Uma das frases e palavras de ordem mais emblemáticas do período foi “É PROIBIDO PROIBIR”, para muitos tinha relação com a censura que era intensa, hábitos e costumes arcaicos e ultrapassados que tudo proibia. Para outros com a crença de que nada podia ser proibido, e consequentemente tudo devia ser liberado, até aí tudo bem, certíssimo, nada deveria ser pura e simplesmente proibido. Nesse momento, para muitos, teve início o uso de várias substâncias químicas para experimentação que a muitos levará à doença, loucura ou morte, ouso dizer que a proporção dos que se recuperam, ou conseguem ter uma vida saudável após esse período é menor daqueles que continuam sofrendo. Entre muitos dos legados recebidos tão positivos, esse é um dos negativos.  
           
            4.2.Década de 1980 e o ressurgir do anarquismo
Existe uma literatura e historiografia comprometida com seus interesses de classe social ou política, entre outros, os marxistas que tentaram fazer crer, que o anarquismo desapareceu. Contudo, pela convivência com os militantes mais velhos, e inúmeras pesquisas sabemos que isso é uma mentira. Evidente que o anarquismo perdeu parte da força que tinha no passado, mas sempre se manteve vigilante, firme e forte nas brechas dessa sociedade.
Ressurge de forma pública na década de 80 com os companheiros do Centro de Documentação e Pesquisa Anarquista, e o jornal Inimigos do Rei, na Bahia, do Grupo Anarquista Jóse Oiticica no RJ, em SP com o Centro de Cultura Social, reaberto no Brás em 1985, assim como outros em muitos lugares.
No CCS estavam nossos companheiros mais experientes, a geração que sobreviveu às ditaduras, hoje muitos falecidos, entre eles muitos espanhóis que lutaram na guerra civil e portugueses que resistiram a ditadura salazarista, a esses se somaram trabalhadores, estudantes e professores universitários.
Mas, uma característica marcante desse momento é um enorme hiato geracional, uma diferença de idade que em muitos casos ultrapassava 30 anos. Quando cheguei ao CCS ainda participava do movimento punk, era estudante secundarista e metalúrgico tinha 20 anos e era um dos mais jovens, o que vinha logo após, tinha 20 anos a mais e os demais mais de 30.
Nós da década de 1980 começamos (ou demos continuidade) a um ciclo em que os jovens se iniciam cada vez mais cedo no mundo das experimentações das diferentes substâncias químicas, geralmente primeiro em nossas casas nas festas familiares, ou com nossos pais. Quem não se recorda da cena? A “criança olhando para o copo de cerveja, vinho ou até caipirinha de alguém, e o outro diz, molha a chupeta no copo para ela não ficar com vontade; ela pode ficar doente, ter lombriga”. Era comum, habitual o uso doméstico de bebidas alcoólicas entre outras substâncias, e que depois se estendia para o uso com os colegas de escola ou de outros espaços, nos movimentos culturais juvenis com quem convivemos e onde os nossos modelos de pessoas eram outros igualmente doentes, muitos desses também já falecidos de overdose.  
Ainda que estudasse muito, diversos aspectos da vida como um todo e do anarquismo de forma geral, mantinha uma relação duvidosa e desafiadora em relação à sabedoria desses companheiros, no que diz respeito, a vários aspectos e também ao consumo das diferentes substâncias, das quais fazia uso, e negava os efeitos prejudiciais.  A NEGAÇÃO é a mais forte característica do dependente químico, e, não por acaso, os grupos de autoajuda mais antigos e com melhores resultados Alcoólicos Anônimos e Narcóticos Anônimos, propõem no seu programa de recuperação, que o primeiro passo do doente “é admitir que perdeu o controle sobre sua vida”.
Enfim, éramos nós, a caminho da adicção, assumindo a militância ao lado daqueles que no passado faziam as tais campanhas preventivas em relação às várias substâncias químicas que podem trazer prejuízo a vida pessoal, familiar, política e social do indivíduo. Esse hiato nunca foi uma disputa geracional explícita, mas com certeza havia muita desconfiança em relação a nossa geração. Valorizávamos a nossa própria experiência e negávamos a experiência dos outros, que estavam marcadas pela história de vida desses militantes além dos registros da historiografia e literatura.
 Durante meus anos de CCS, convivendo com homens sábios e gentis, uma única vez, ouvi o Jaime Cubero, secretário do Centro de Cultura Social fazer um comentário pouco elogioso ao uso de substâncias químicas; certa feita bebendo cerveja em um grupo junto com o Chico Cubero, percebendo a velocidade com que eu sorvia a cerveja, ele me disse: “você não acha que bebe demais?
Certa vez, encontrei o professor Mauricio Tragtenberg perto da PUC onde lecionava, próximo de onde morava, e, conversando sobre a maconha, me disse:  “não vejo graça, fumar e depois ficar de boca aberta ‘moscando’”. Se eles insistissem – Jaime e Chico Cubero e Maurício Tragtenberg –, só nos afastaríamos, pois éramos – eu em particular - a própria negação em pessoa. Hoje, muitos de nós mais maduros, estamos dispostos a abordar e conversar sobre esse tema com um companheiro, um colega ou um familiar? Estamos preparados?

            5. ANARQUISMO: a mais alta expressão da ordem!
Elisée Reclus afirma que o anarquismo é a mais alta expressão da ordem, pois, é a ordem livremente construída de baixo para cima e aceita por todos os envolvidos, mas, para o adícto esse tema, essa ordem existe na teoria, no campo do conhecimento e não na prática.
Jaime Cubero definiu como ideias força o que outros definem como princípios anarquistas: liberdade/autonomia, organização do simples para o composto / federalismo (rede), autogestão, apoio mútuo e solidariedade; ideias-força que deveriam orientar as ações dos anarquistas em toda sua vida.
Para Daniel Guérin "não me torno livre senão pela liberdade dos outros... A pessoa só realiza a liberdade individual desde que se complete com todos os indivíduos que o envolvem e somente graças ao trabalho e ao poder coletivo da sociedade”. Tal liberdade traz em si outro componente igualmente valioso que é a responsabilidade pelos seus atos, afinal como pessoa livre devo antes de qualquer coisa responder primeiro a minha própria consciência e depois a sociedade libertária. Nessa direção Maurice Joyeux afirma que essa liberdade “(...) é o princípio que consubstancia um dos mais altos valores humanos é inconcebível sem a igualdade econômica".
O adicto por sua obsessão e compulsão reconhece a liberdade, mas não a vivência de forma responsável, senão o que dizer das suas falhas de carácter, quando não é responsável pelo seu dinheiro, pela sua vida? Como justificar isso aos seus companheiros de grupo, a sua família, esposa, filhos e amigos, quando não age de forma coerente com o que defende.
federalismo (REDE) deve ser visto como uma estrutura que cresce de baixo para cima, partindo do simples para o composto, da associação dos trabalhadores de uma empresa ou moradores, de uma região para outra e depois para a cidade, etc. A uma organização fundada na violência e no princípio da autoridade instituída: o ESTADO. Frente a essa instituição devemos opor associações fundadas na auto-organização das pessoas e dos grupos sociais, em âmbito do bairro, cidade, estado, nação, etc. É o indivíduo livre que se associa com outros igualmente livres para gerir todos os assuntos que lhes dizem respeito.
O adicto estará mais (associado) federado, com seus companheiros de consumo, aqueles com quem convive com mais frequência para fazer o seu uso frequente. Como uma verdadeira federação, ele se encontrará com outros dependentes químicos em qualquer lugar por onde andar, também nesse caso, os grupos de autoajuda sugerem como um dos seus passos “evitar os velhos caminhos e as velhas companhias”. 
Para Joyeux autogestão não é uma estrutura no seio da qual se elabora uma experiência socialista, ela é o fruto de uma experiência socialista que resulta da ruptura revolucionária. É quando se produz essa ruptura que intervém a autogestão, simultaneamente como autogestão das lutas e da economia (ou o que restar dela).
Como um adicto pode autogerir sua vida sendo dependente de substâncias químicas, de pessoas como o traficante ou de lugares onde geralmente consuma ou de objetos que fazem parte de seus rituais de uso?
É importante ressaltar que os libertários reconhecem a necessidade da adoção de regras em toda a sociedade; não pode existir autogestão sem regras. A consideração importante não é tanto se devem existir regras, e sim, sobretudo, o modo como as regras serão criadas, os processos determinarão sua extensão.  
Ainda que o adicto possa durante boa parte de sua vida ser um ser social produtivo e atuante nessa sociedade idealizada, quanto tempo levará para que ele se torne, pela sua condição de doente, um peso no futuro? É justo e aceitável que a sua liberdade vivenciada de forma tão irresponsável o torne um fardo para os demais?
De acordo com Errico Malatesta, essa forma de organização da sociedade pretendida pelos anarquistas “(...) outra coisa não é senão a prática da cooperação e da solidariedade, condição natural, necessária, da vida social, fato inelutável que se impõe a todos tanto na sociedade humana quanto em todo grupo de pessoas que tenham um objetivo comum a alcançar”. 
Com sua forma específica de organização e a aplicação desses princípios, os anarquistas desejam abolir de forma radical a dominação e a exploração do homem pelo homem. Querem os homens, unidos fraternalmente por uma solidariedade consciente, que cooperem de modo voluntário com o bem estar de todos, que essa sociedade seja constituída com o objetivo de fornecer a todos os meios de alcançar igual bem estar possível, o maior desenvolvimento possível moral e material.
O adicto é solidário e cooperativo até o momento que isso não dificulte seu desejo de consumir, não atrapalhe seus momentos e rituais de consumo. Quando isso acontecer ele se verá em uma situação que tanto poderá optar por continuar se enganando nessa zona de conforto quanto confrontando seu problema, buscando ajuda e descobrindo sua doença, incurável, mas tratável.
Os anarquistas estimam ser necessário que os meios de produção estejam à disposição de todos e que nenhuma pessoa ou grupo de pessoas, possa obrigar outros a obedecerem a sua vontade, nem exercer sua influência de outra forma senão pela argumentação e pelo exemplo. Que exemplo damos quando não temos o controle sobre nossas próprias vidas? Quando muitas vezes nos engamos dizendo “eu uso, mas paro quando quiser, tenho controle sobre minha vida, não sou viciado?”, mas, na prática já não vivo sem usar.  
Como o adicto pode estar pronto para a ação direta – que é democrática, pois cria espaços públicos em que cada um é um e você não delega a ninguém, por isso os anarquistas são contra o voto obrigatório nas eleições, defendem a auto-representação, cada cidadão é cidadão de si mesmo –  se muitas vezes ele esta presente com a mente ausente, na pratica delegando a outros lutarem por ele?
Para os anarquistas é necessário proceder imediatamente e como se puder à expropriação dos capitalistas; ocupação das fábricas, das terras, dos bancos, meios de transporte pelos trabalhadores. Inventário de todos os bens de consumo disponíveis e organização da produção e da distribuição através dos sindicatos, das cooperativas, das câmaras de trabalho, dos grupos de voluntários e de todos os tipos de associações existentes ou que se constituirão para responder as necessidades imediatas. A autogestão.
É uma necessidade imediata lutar para poder consumir? Consumir algo sem o que vivemos bem? Quando em particular entramos nessa ciranda de consumo nos diferenciamos dos playboys, que criticamos por irem ao shopping gastar com roupas e calçados caros? Como dizemos, roupas de grife famosas? Quando comprometidos com um grupo de militantes, colegas de um time de futebol ou uma famílias e escondemos parte ou a totalidade do dinheiro que recebemos pelo nosso trabalho para nosso consumo dessas substâncias químicas estamos de fato sendo éticos?  
Em uma sociedade libertária o uso, seja lá do que for, deverá ser livre, mas, será igualmente estimulado por todo tipo de propaganda? Não nos dedicaremos a estudar esse e outros aspectos de nossas vidas, para nos orientar e divulgar o resultado de nossas pesquisas, alertando para os malefícios que substâncias, alimentos, prática de vida, etc, que poderão causar danos em nossa vida em sociedade?
Enfim, com as tecnologias disponíveis seria possível realizar assembleias, mesmo que por representação, onde todos poderiam acompanhar os debates, e até intervir nas votações através das redes de computadores hoje disponíveis. Fazer reuniões e assembleias de bairro, cidades, intercidades, por regiões, nacionais, internacionais que tomariam as iniciativas necessárias, em concordância com as dos outros, e que as realizariam sem pretender fazer a lei para todos, nem as impor pela força aos reticentes.

6.Prazer e doença.
É evidente que alguns consumirão seus baseados ou suas cervejas, vinhos e outras bebidas, seus “remédios” sem prescrição médica, etc, durante toda a vida e não terão problemas, serão pais e mães responsáveis, militantes comprometidos, mas, podem garantir que se tiverem problemas conseguirão superar a negação? Procurarão ajuda? Sabem onde procurar?
Não posso negar o “prazer” que desfrutei durante certo tempo de minha experiência, contudo, com o consumo cada vez mais compulsivo e obsessivo fui perdendo o controle e comprometendo, a minha qualidade de vida, bem como daqueles que mais amo.
As drogas proporcionam prazer? Sem sombra de dúvidas! Afinal temos uma dor de dente e tomamos uma droga para aliviá-la. Era prazeroso beber uma cerveja, mas o que dizer de uma dezena ou mais? Desde a adolescência tenho insônia e nada mais prazeroso que fumar um baseado para dormir bem, mas e quando não o temos, não teremos insônia do mesmo jeito? E quando, além da hora de dormir, fumamos durante todos os momentos do dia? E quando nosso último pensamento antes de dormir é “fumar um”, e ao acordar é fumar outro? Isso para ficar nas drogas, cuja dependência se estabelece mais lentamente, existem outras cuja dependência é mais rápida e intensa, nos torna doentes mais rapidamente, com um comprometimento pessoal quase que total. Existe sim o prazer, mas nesse caso, o preço pago por ele é alto demais e imediatista.
Ação preventiva
Estarão os companheiros atuais e futuros, usuários das mais diferentes substâncias químicas, em condições de reconhecer sua lenta e paulatina perda de controle? Do desenvolvimento dessa doença chamada alcoolismo e adicção? Aqueles que hoje dizem não ter esses tipos de problemas podem afirmar, sem nenhuma sombra de dúvidas, que não os terão?
Os que são usuários, e acreditam ter esse controle, conseguem reconhecer que isso pode, ou está, acontecendo em qualquer lugar, inclusive, na sua casa, no seu local de estudo, trabalho, cultura e lazer?  
Estamos prontos a exercer de forma responsável e solidária nossa liberdade, no sentido de conversar com esses companheiros, amigos e familiares, convidando-os a perceber o quanto que comprometem suas vidas? O quanto eles e nós perdemos em nossas vidas com suas escolhas?  O quanto isso é um projeto de MORTE e o ANARQUISMO propõe um projeto de VIDA?
Somos cooperativos o suficiente em apoiá-los para que sintam a confiança necessária, e novamente assumirem o controle de suas vidas? Para autogerirem suas vidas de forma autônoma, responsável, solidária, cooperativa na obra comum que nos propomos realizar?
Que se libere o consumo de todo tipo de substâncias químicas. Muitos argumentam que morrerão muitas pessoas! Não morrem hoje? A proibição é um fenômeno político e cultural. Em outras época e contextos o que hoje está proibido já foi liberado, vemos pelo mundo experiências de descriminalização, liberação e ate de legalidade. Mas sempre tenhamos a coragem de assumir uma posição de questionamento em relação a tudo, inclusive ao nosso exercício da liberdade.
Continuo tendo amigos e colegas que são usuários contumazes e muito os respeito, mas, “quem quiser julgar que julgue, quem quiser criticar que critique”, (qualquer semelhança com Zeca Pagodinho não é mera coincidência), posso falar por experiência que, no meu caso não deu certo. Convivi, e convivo, na condição de educador, ser politico e social, morador da periferia com essa experiência que para muitos continua não dando certo.
Às vezes, acho que hoje ser careta é ser revolucionário, pois são muitas as desculpas e estímulos que nos levam a experimentação e ao uso abusivo e indevido dos mais diferentes tipos de substâncias químicas. 

Antônio Carlos de Oliveira
Professor Coordenador Pedagógico da EE Prof. Isaac Shraiber - Março de 2014





[1] No processo de construção desse texto dois companheiros e amigos foram imprescindíveis, Jose Damiro Moraes, Professor Doutor em Educação e Edvaldo Vieira da Silva, Professor Doutor em Ciências Sociais, ainda assim todas as ideias aqui apresentadas são de minha única e exclusiva responsabilidade.
[2] Agradeço imensamente aos companheiros do NELCA por abrirem o espaço para essa discussão, não é um ponto de vista muito comum e ainda que seja de minha responsabilidade tudo que exponha eles são os responsáveis pelo espaço e sua programação.
[3] Adicto é a forma como é tratado o usuário de vários tipos de substâncias químicas diferentes, uso por ser o mais comum, mas é tema controverso, afinal o alcoólatra que é tabagista não faz uso de duas substâncias químicas diferentes? Muitos alcoólatras em recuperação não aceitam tal definição.