quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Definindo Atitudes



Após as jornadas de junho do ano passado (como ficaram conhecidas), vários jovens passaram a se interessar pelo anarquismo, especialmente influenciados pela forma que os meios de comunicação de massa moldavam a ideologia e ação libertária.
A enorme despolitização que existe em meio a juventude e a população em geral (que foi um fator preponderante para o esvaziamento das jornadas de junho de 2013) somada a exposição tendenciosa dos órgãos de informação sobre as manifestações populares e, por conseqüência, sobre o próprio anarquismo, tem influenciado uma nova geração de jovens ativistas que parecem ainda não terem se encontrado em meios as inúmeras pautas e reivindicações que permearam as mobilizações do ano passado.
Um fenômeno que fazia um bom tempo que não se via, por exemplo, era um jovem se dizer “anarco-comunista” e divulgar um texto com um símbolo anarquista de um lado e do outro a foice e o martelo, ignorando, que o anarco-comunismo (ou comunismo anarquista, ou ainda comunismo libertário) não se trata da junção de anarquismo com comunismo (autoritário, Estatal, entenda-se) e sim de uma vertente já clássica do próprio anarquismo. Ou seja, pode-se dizer que o anarco-comunismo é um sinônimo do anarquismo e que pouco tem com o comunismo ortodoxo e autoritário.
Acreditamos que a melhor forma para se compreender o que vem a ser o anarquismo e o comunismo seja estudando e conhecendo os intensos debates entre Mikhail Bakunin e Karl Marx.
O NELCA numa tentativa de trazer esse debate para mais perto de nossa realidade e aproveitar para continuar resgatando a memória do anarquismo no Brasil, traz nessa publicação três textos clássicos, sobre os reflexos da revolução russa no Brasil, que colaboram para definir o que vem a ser o anarquismo e o comunismo, quais são suas convergências e divergências.
Antes de se apresentar os textos em si, é importante que se registre que os anarquistas no Brasil, já faziam campanhas nos meios trabalhadores em prol dos revolucionários russos desde o longínquo ano de 1904.
O primeiro texto que apresentamos nessa seleção, foi publicado no periódico anarquista “A Plebe” (São Paulo), em 1920. Seu autor Florentino de Carvalho (cujo nome real era Primitivo Raymundo Soares), juntamente com Manoel Campos e outros anarquistas, foi dos primeiros a questionar os rumos da revolução russa no Brasil.
Nesse momento questionar a revolução russa era correr o grande risco de ser taxado até por alguns de seus próprios companheiros de contra-revolucionário, visto que acreditava-se que a Rússia estava vivenciando uma revolução libertária. Vale lembrar a dificuldade de circulação das informações nessa época, e que alguns jornais comerciais desse período ao noticiar os acontecimentos da revolução russa estampavam manchetes na primeira página com os dizeres “Anarquia na Rússia” e outros slogans similares, que colaboravam para uma confusão generalizada, não tão diferente do que (em alguns casos), acontece hoje em dia. 
Mesmo dentro desse contexto social, nesse artigo, Florentino de Carvalho diferencia formidavelmente anarquismo de socialismo de Estado, afirmando que a revolução na Rússia construiu uma nova república burguesa e que o povo continuava vivendo sob o regime do patronato, do salariato e do Estado.
Reforçando o fato de que a ditadura do proletariado, não passa de uma ditadura dos dirigentes do partido sobre toda a sociedade e que os anarquistas eram, de fato, os verdadeiros defensores da revolução russa, defensores do povo russo contra os seus tiranos externos (Estados internacionais capitalistas) e internos (Partido Comunista).
Uma análise no mínimo extremamente lúcida, corajosa e visionária para o distante ano de 1920. Em sua reflexão, Florentino de Carvalho também afirma que a intensa propaganda do bolchevismo está despertando entusiasmos mesmo a muitos anarquistas, fazendo-os esquecer de seus ideais libertários, o que nos leva ao segundo texto. 
O segundo texto foi escrito pelo anarquista italiano Oreste Ristori, que iniciou sua militância ainda muito jovem, tendo passado pela França, Espanha, Argentina e Uruguai, antes de fixar residência em São Paulo. Esse texto foi retirado do primeiro número da revista “Movimento Communista” (Rio de Janeiro) de 1922, que foi a primeira publicação do Partido Comunista Brasileiro (PCB).
Oreste Ristori nesse texto demonstra toda sua empolgação com os acontecimentos da revolução russa, defendendo-a e ao mesmo tempo atacando os seus antigos companheiros anarquistas. Chega inclusive a afirmar que “a ditadura é como a cabeça e o facho da revolução”.
Com uma escrita sarcástica, ele afirma num tom bastante irônico que se os anarquistas se colocam contra o poder autoritário, logo também deveriam se colocar contra as revoluções, contra a supressão do Estado burguês, contra a abolição da propriedade privada, a greve violenta e a boicotagem, pois todas seriam formas de “um poder autoritário”.
Oreste Ristori que nesse texto chama os anarquistas de anti-ditadores (poderíamos, então, classificar Ristori como um pró-ditador?), confunde (propositalmente) autoritarismo com autoridade.
Os anarquistas entendem autoritarismo como um sinônimo de opressão e despotismo. Por outro lado, o termo autoridade (também entendido como capacidade, conhecimento e, inclusive, força da natureza), era aceito até por Mikhail Bakunin, que não contestava a autoridade da natureza, de suas leis e da vida, que são reconhecidas por todos (e não são meras imposições do Estado ou da Igreja) e, portanto, são legítimas. Assim como a autoridade do conhecimento, também reconhecida pelos anarquistas.
Da mesma forma como os anarquistas também entendem como legítimo, quando uma classe oprimida se levanta contra o seu opressor e usa todos os meios ao seu alcance para suprimir essa opressão. Por isso os anarquistas são contra a autoridade de uma ditadura, mas não contra a autoridade de uma revolução popular (parafraseando Ristori, que em seu artigo, considera tal atitude uma incoerência).
Sendo Oreste Ristori um militante antigo e culto, nos parece que nesse texto, movido por sua empolgação com a experiência da revolução russa, ele tenha sido pouco honesto em seus argumentos. O que de certa forma, não é grande surpresa, uma vez que ele já havia se afastado da militância anarquista ainda no final de 1911.
O terceiro e último texto, é uma resposta ao artigo de Oreste Ristori, e foi publicado no periódico anarquista “Renovação” (Rio de Janeiro), também em 1922.
O texto está assinado pelo pseudônimo de Karis Takos e, de uma forma mais simples, ele sustenta argumentos semelhantes aos de Florentino de Carvalho.
Karis Takos colocando em dúvida a honestidade dos argumentos de Oreste Ristori, indaga: “Porque querer confundir o que é inconfundível?”. Reforçando que a ditadura é o privilégio da autoridade baseada em forças cegas, manejadas pelos que detêm o poder. Enquanto as sublevações mais ou menos violentas, são a conseqüência imediata da imperfeição do estado social. E vai além: “Afirmar, como Ristori, que todos os procedimentos são essencialmente burgueses, intrinsecamente autoritários nas lutas contra a tirania organizada, é tanto como declarar-se anti-anarquista, e muito mais, repudiar como extravagantes os princípios essenciais da lógica anarquista”.
Enfim, lendo esses textos que debatem a experiência da revolução russa no Brasil, podemos concluir facilmente que o que separa os anarquistas dos comunistas são seus princípios e métodos de ação. Enquanto os comunistas defendem e justificam a todo custo os métodos autoritários utilizados contra a população (não contra os opressores), os anarquistas afirmam categoricamente que o autoritarismo e a centralização do poder vão gerar um novo sistema de opressão, até maior que o antigo regime.
Essas são diferenças irreconciliáveis a nosso ver. É preciso assumir posturas e definir atitudes, como diziam os anarquistas no Brasil, nos anos 20. E você leitor ? De que lado você está ?

Nós estamos do mesmo lado que Florentino de Carvalho quando ele diz: “Nesta emergência continuaremos a ser tolerantes com todos aqueles que não pensem como nós, mas permaneceremos intransigentes nos nossos princípios que julgamos insuperáveis. Propague quem quer que seja as suas revoluções de tendências ditatoriais ou autoritárias, nós propagaremos única e exclusivamente a revolução proletária ou social, para estabelecer os princípios anarquistas”. Boa leitura & reflexão !!!




Em Torno Da Revolução Russa

Somos dos primeiros em reconhecer e admirar o gigantesco esforço do povo russo realizando a maior das revoluções que a história registra. Somos dos primeiros a constatar as altas qualidades dessa raça sensível, entusiasta, idealista que com seu sangue generoso abalou os alicerces da sociedade burguesa e despótica, despertando em todos os povos a consciência revolucionária e a confiança na possibilidade da realização dos modernos princípios sociais.
A propriedade, o Estado burguês, a Igreja estão, por isso, em estado periclitante e a emancipação dos oprimidos parece estar iminente. Por isso combatemos com todas as nossas forças a agressão armada da burguesia germânica e a dos Estados aliados contra os revolucionários russos para esmagá-los e, hoje, continuamos nessa mesma atitude com o fim: de que a revolução social provoque por todo o mundo a derrocada do capitalismo e da autoridade.
Em contraposição as notícias tendenciosas propagadas pelos órgãos burgueses de publicidade, nós procuramos restabelecer a verdade e levar ao conhecimento de todos os benefícios da revolução, principalmente as liberdades e os direitos obtidos pelo proletariado, propagando mesmo alguns dos seus princípios como aquele segundo o qual “quem não trabalha não come”, princípio que não sintetiza completamente a nossa doutrina, mas é de excelente resultado pela facilidade com que as massas o compreendem.
Com o andar do tempo, porém, fomos adquirindo notícias diretas, insuspeitas, estudamos as obras dos pronomes do bolchevismo, publicadas após a revolução, acompanhamos a evolução do regime dos sovietes e chegamos à conclusão de que na Rússia se havia estabelecido uma república sob as bases do socialismo de Estado: que os elementos estranhos ao partido bolchevista haviam sido afastados de todas as instituições públicas; proclamando-se a ditadura do partido dominante; que os adversários da ditadura bolchevista foram perseguidos e que essa perseguição foi movida com verdadeira sanha, principalmente contra os anarquistas porque estes eram os que ofereciam maior perigo contra o Estado maximalista, perseguição que chegou a provocar protestos até por partes de vários funcionários de mais destaque: começamos a ver na república dos sovietes russos um perigo contra as liberdades conquistadas, contra os benéficos resultados da revolução.
Conhecedores da doutrina marxista, da democracia socialista, tínhamos a certeza de que se elementos verdadeiramente revolucionários ou libertários não tivessem possibilidades de conter a corrente autoritária, aquilo degeneraria numa nova república burguesa.
E, de fato, é o que está acontecendo. A propriedade está sendo monopolizada pelo Estado e, de contrabando, os industriais, os comerciantes e os agricultores, pequenos proprietários estão formando uma nova burguesia, antes de ter o governo soviético destruído o que já existia.
Continua, portanto, o proletariado sob o regime do patronato, do salariato, do Estado.
Em vista dos males sociais que ainda persistem ou surgem na Rússia e certos de que a intensa propaganda do bolchevismo está prendendo a atenção de todo o mundo, despertando entusiasmos, fazendo esquecer, mesmo a muitos anarquistas, os seus ideais libertários, chegamos a conclusão de que o bolchevismo vinha prejudicando, assassinando – permitam o termo – a grande obra da revolução social emancipadora.
O bolchevismo marxista baseia-se no princípio da autoridade, estabelece que a propriedade deve ser administrada pelo Estado, proclama a ditadura proletária, que na prática não passa de ditadura dos dirigentes do partido, conserva o regime do salário e muitas outras modalidades burguesas que deixo de mencionar por falta de espaço e porque não são de importância máxima.
Todos estes princípios são anti-anarquistas, liberticidas e merecem a reprovação de todos os homens livres.
Pois bem, com estes princípios e com o pretexto da reação externa, os ditadores do Estado bolchevista, que nos primórdios do regime constituíam um governo fraco, foram pouco a pouco, fortalecendo-se, suprimindo a autonomia dos sovietes locais e assegurando a autoridade cada dia mais absoluta do poder executivo.
Nestas circunstâncias, julgamos oportuno e necessário, ao mesmo tempo que combatemos a intervenção dos aliados na Rússia por o povo de sobreaviso contra as tendências reacionárias e despóticas dos governantes da república russa.
Para nós a intervenção dos aliados na vida interna do povo russo é um grande perigo para a revolução, mas o avanço ditatorial reacionário dos bolchevistas é um perigo porque a guerra externa impele o povo à união unânime para a resistência ao passo que a reação interna, partindo dos elementos considerados revolucionários, partindo do Estado constituído é um perigo maior, pois que este não permite com as suas forças armadas os seus elementos compreensivos que o povo se organize e se prepare para fazer respeitar os seus direitos.
Em rigor o povo da Rússia não está armado como alguém afirmou: o governo teve o cuidado de desarmar todos os seus adversários e submetê-los a uma severa vigilância e a uma perseguição metódica, para cujo trabalho dispõe de uma burocracia policial incomparável.
Nós somos, portanto, os verdadeiros defensores da revolução russa, defensores do povo russo contra os seus tiranos externos e internos.
Ao contrário, os que defendem o regime da ditadura maximalista da Rússia contribuem para que o Estado se fortaleça e esmague com mais facilidade a agitação revolucionária de tendências libertárias e favorecem ao mesmo tempo a burguesia internacional porque aburguesado o regime político moscovita, ele fará causa comum com os outros Estados burgueses na sua repressão contra as agitações ou revoluções proletárias.
Finalmente, com relação à Terceira Internacional de Moscou, temos a fazer conhecer aos que ainda ignoram as suas bases que ela aceita os princípios do socialismo de Estado, acima mencionado e admite, ainda como meio de luta a ação eleitoral, que aliás também está em pugna contra os nossos meios de luta francamente revolucionária.
Tornamos públicas estas considerações afim de que a nossa atitude relativamente ao movimento revolucionário russo seja esclarecida e não dê lugar a erradas ou sofismadas interpretações.
Nesta emergência continuaremos a ser tolerantes com todos aqueles que não pensem como nós, mas permaneceremos intransigentes nos nossos princípios que julgamos insuperáveis.
Propague quem quer que seja as suas revoluções de tendências ditatoriais ou autoritárias, nós propagaremos única e exclusivamente a revolução proletária ou social, para estabelecer os princípios anarquistas.

# Por Florentino de Carvalho, publicado no periódico “A Plebe” (São Paulo), em 30 de Dezembro de 1920, Número 98, página 2.





O ‘Non Expedit’ do Anarquismo Contra a Ditadura

Acompanhando o apaixonado debate que se está desenvolvendo em quase todos os periódicos anárquicos de ambos os continentes sobre o tema da “ditadura do proletariado”, temos tido a oportunidade de conhecer a opinião, a este respeito, de muitos apreciados companheiros, entre os quais de encontram: Sebastian Faure, Malatesta, Fabri, Bertoni, e dói-nos ter de confessar que o único argumento básico, em que se acastela toda a crítica dos anti-ditaduristas, consiste no seguinte: “a anarquia sendo a negação de todo o principio de autoridade, de governo, de mando, é incompatível com a ditadura proletária, que implica precisamente o exercício de um poder autoritário, e, por conseqüência, todo aquele que o aceita ou propaga não pode ser anarquista”.
O principio lógico, que se depreende de semelhante raciocínio, não poderia ser mais anti-anárquico, nem mais infantil e absurdo: “tudo aquilo que, em matéria de idéias e métodos de luta, não se compatibiliza com os princípios essências da anarquia, deve ser repelido”.
Vamos ver agora a que insensatas conclusões nos arrastaria esse principio, uma vez aplicado e estendido à todas as suas conseqüências. Eis aqui, para uso e consumo dos anti-ditadores, alguns argumentos perfeitamente iguais:
1 – A anarquia, sendo um estado de completa harmonia entre os homens, negação de todo princípio de autoridade, de governo, de mando, é incompatível com a revolução social, que implica o exercício de um poder autoritário (o poder da massa, do povo, do padre eterno ou de quem se queira), que se impõe... à força de canhão. Nada, pois, de revoluções!...
2 – A anarquia, sendo expressão da mais absoluta liberdade para todos, é incompatível com a supressão do Estado burguês, que implica um atentado de evidente violência contra a liberdade daqueles que o queiram manter. Nada, pois, de supressões do Estado burguês!...
3 – Por idênticas razões, a anarquia é incompatível com a abolição da propriedade privada, que implica um despojo forçado e uma violação à liberdade de todos aqueles que têm interesse em conservá-lo. Nada, pois expropriação!...
4 – Sempre por seus princípios essências de liberdade, a anarquia é incompatível com a greve violenta, porque implica o exercício de um poder autoritário por parte dos trabalhadores que pretendem impor a classe capitalista aumentos de salários, reduções de horários, etc., violando assim a liberdade dessa classe, que não quer que se lhe arranquem semelhantes concessões. Nada, pois de greves!...
A base dessa mesma lógica interpretativa, a anarquia é também incompatível a com a boicotagem porque esta implica exercício de autoridade, de ditadura, por parte sempre dos trabalhadores atentando contra a liberdade alheia. Há de ser, pois repelida.
Fazendo nosso o peregrino argumento dos anti-ditadores, não saberíamos se nos restaria ainda algum método de luta e um só ato da vida compatíveis com tão extravagantes “princípios essenciais” da anarquia. Nada, ninguém poderia evitar incorrer no pecado mortal da incoerência e da apostasia. Teríamos que encerrar-nos como anacoretas numa redoma de vidro, para admirar, através de suas paredes cristalinas, os reflexos resplandecentes do sublime ideal, e amarrar numa mesma sentença condenatória ao que aceita o salário e ao que o combate, ao que trabalha para perpetuar o regime capitalista e ao que se esforça para destruí-lo, numa palavra, a todos os meios possíveis de luta pela transformação do sistema social e da vida, já que todos esses meios são “essencialmente burgueses”, quer dizer, intrinsecamente “autoritários” e, como tais, incompatíveis com os princípios essenciais da anarquia.
O que temos de verdadeiramente original, de indiscutivelmente próprio, e cuja paternidade ninguém poderá disputar-nos, são as formas ideais de igualdade e de justiça em que quiséramos ver instalada a sociedade do porvir, as concepções aladas de um novo mundo sem autoridade, sem governo, sem leis, sem exércitos, sem exploração e sem lutas sangrentas pela existência, porém, a revolução que nós preconizamos “como meio” para chegar a esta meta, assim como qualquer outra das modalidades de luta que atualmente conhecemos e empregamos para abrir caminho, não a inventou Bakunin, nem Reclus, nem Malatesta. É um supremo recurso de origem puramente burguesa, tão velho quase como velho é o mundo, e que nós apenas ontem fizemos nosso e introduzimos em nosso programa, sem aplicar-lhe a menor modificação. Achamo-lo tal como soa em seu histórico significado de explosão, de violência contra todas as instituições, poderes e privilégios do Estado capitalista, sem absolutamente nos preocuparmos em saber se os efeitos destrutivos e reconstrutivos de tal desencadeamento de violência poderiam prejudicar os interesses, conculcar os direitos, atentar contra a liberdade de classes privilegiadas e daqueles que as defendam, e ser compatíveis com os princípios da anarquia. Pela mania de fazer frases vazias e cuspir sentenças absurdas não temos tampouco procurado penetrar um pouco mais fundamente na questão para compreender que afinal de contas a revolução, no sentido do emprego de um máximo de força para destruir um regime e suplantá-lo por outro, não é mais que o exercício de uma autoridade (a do povo) que se sobrepõe a das classes burguesas em sua forma mais brutal, pela destruição e pelo massacre. Em outros termos: uma ditadura (embora não se lhe dê esse nome) a base de ferro, fogo e terror.
Os anti-ditadoristas não repelem a idéia liberticida da revolução (liberticida, entende-se, para as classes burguesas), porque, apesar de toda incompatibilidade, segundo se depreende de sua frouxa lógica, com os puros princípios da anarquia, não sabem como substituí-la por outra, porém, em troca, supõem ser coerentes quando repelem a ditadura, que é como a cabeça e o facho da revolução. Ofende-os a autoridade da ditadura, não a autoridade da revolução. Eis aí a coerência!
E com tanta puerilidade nas idéias e nos argumentos, com tantos absurdos e contradições, pretendem levantar uma barreira contra a ditadura do proletariado, invocando o nome imaculado da anarquia. Bonito modo de interpretá-la! Afortunadamente, ela não será o resultado das secreções filosóficas dos que, por excessiva modéstia, pretendem manter o monopólio da verdade e do amor as idéias nem das pequenas capelas sectárias. Será, sim, o cociente de todos os esforços do mundo sabiamente disciplinados e conduzidos pelos que tenham uma visão mais ampla e profunda da realidade das coisas.

# Por Oreste Ristori, publicado no periódico “Movimento Communista” (Rio de Janeiro), Janeiro de 1922, Número 1, Ano 1, página 8.




Ditadores & Anarquistas

Também podíamos dizer anarquistas ditadores, ainda que tal termo compreenda dois extremos tão opostos. Com efeito, que abismo tão infinito de idéias, de sentimentos, de concepções sociais não separam o exercício máximo da autoridade, do seu antagônico: o de liberdade!...
Há camaradas, porém, que, apesar desta tão clara evidência, olvidam, em holocausto, a realidade dominante, a confusão que logicamente se deve estabelecer essa pretensão revolucionária de construir uma ponte que transponha esse báratro e permita à humanidade passar fraternalmente dos limites anacrônicos em que se encontra, das trevas em que se debate, aos esplendores da luz, ao reinado idealista duma vida anárquica.
A aversão que tal desacerto produz nas consciências profundamente libertárias, move nossa pena e nos impele, sem mais preâmbulos, a refutar os sofismas que Oreste Ristori emprega no seu artigo “O Não Expedit do Anarquismo Contra a Ditadura”, publicado no 1º número do “Movimento Comunista”.
Em tal tese, pretende-se comparar a pureza das intenções anárquicas com os métodos de luta defensiva que os anarquistas e os que mais diretamente sofrem as opressões sociais se vêem obrigados a praticar para não perecer na resignação duma vergonhosa escravatura.
Afirmamos, pois, e pretendemos provar, que se a ditadura é absolutamente incompatível com o ideal anarquista, não se infere de tal raciocínio que as lutas que os homens estabelecem para se defenderem dos sofrimentos que lhes causam sejam também repudiáveis. Porque querer confundir o que é inconfundível?... A ditadura, grande ou pequena, branca ou vermelha, é o privilégio da autoridade baseada em forças cegas, manejadas pelos astutos que detêm o poder...
As sublevações lógicas e contundentes, em todas as suas formas mais ou menos violentas, mais ou menos precisas ou confusas, são a conseqüência imediata de estados sociais imperfeitos.
Exercer a violência como sistema, impor a obediência a um poder constituído, não é o mesmo que exercê-la acidentalmente, como meio de defesa contra os embustes da tirania que sob diversas formas e com múltiplos nomes se entronizam nas relações humanas.
Parece-nos absurdo meter no mesmo saco as reivindicações das classes produtoras e os procedimentos capitalistas, burgueses ou parasitas. Como pode negar-se que as primeiras estão inspiradas na necessidade de defender-se de um sistema econômico de coerção e de irritante desigualdade e espoliação, para arrancar algumas melhorias de ordem moral e material às classes monopolizadoras? E como não ver, ao mesmo tempo, que os meios que estas empregam para desvirtuar e escamotear essas ínfimas conquistas proletárias são exclusivos do mais vil egoísmo conservador de privilégios, da mais maquiavélica astúcia e das forças mercenárias ou inconscientes que sustentam todo este conjunto social de antagonismos?...
Afirmar, como Ristori, que todos os procedimentos são essencialmente burgueses, intrinsecamente autoritários nas lutas relativas ou transcendentes que as ânsias de liberdade mantêm contra os da tirania organizada, é tanto como declarar-se anti-anarquista, e muito mais, repudiar como extravagantes os princípios essenciais da lógica anárquica. E, note-se, nada mais alheio de nós que o desejo de criar um dogma intangível e anatematizar os apóstatas e incoerentes, conferindo ao mesmo tempo diplomas de anarquismo, mas nem por isso vamos esquecer que o verdadeiro anarquista é o que ajusta todas as suas ações às suas palavras, inspiradas estas na mais libérrima vontade, desprezando desde logo a usura forçosa que a sociedade impõe aos que nela convivem. Não vamos, tampouco, estabelecer aqui uns “novos dez mandamentos”, fixando o que os anarquistas devem ou não devem fazer, pois temos certeza de que eles têm como objetivo supremo o desenvolvimento da sua consciência para se verem livres de toda a sugestão, de todos os preconceitos, de todo o irracionalismo que caracteriza o confusionismo de todas as políticas que tem por fundamento o modo de governar os povos para fazê-los felizes. Não obstante, queremos expor, aos que nos leiam, o nosso critério anarquista com respeito as revoluções de circunstâncias. Denominamo-las assim porque não há quem possa dizer quando e como se fará a suprema revolução, a definitiva, a que suprima duma vez os ódios seculares e torne verdadeiramente fraternal a humanidade.
Pois bem: é lógico que o anarquista seja revolucionário, se não crê na revolução próxima?... Indubitavelmente que tem que o ser, porque sabe bem que a razão não basta para destruir a força milenar que lhe impede viver livremente. Mas seu revolucionarismo se distingue dos que abraçam todos os partidos gregários.
Está mais na sua consciência que nos seus gestos violentos. O anarquista odeia a inércia e a estupidez das multidões e não se deixa influenciar por elas; mas quando estas, acossadas pela necessidade e dirigidas por redentores de boa ou má-fé se lançam à rua, pode envolver-se na contenda – não para entusiasmar-se, não para abraçar a bandeira que se arvora, não para crer no próximo triunfo da emancipação integral do homem, senão para servir de acicate, para aplaudir e ajudar todo movimento libertador e criticar acerbamente todo gesto de tirania e submissão. Enquanto a revolução se afirma, enquanto dura a luta travada, enquanto existam forças que combatam, há também certa nobreza nas atitudes dos adversários. O perigo aparece, precisamente, quando um partido começa a triunfar, quando, finalmente, se instaura um novo poder.
Então, o anarquista, que vê as novas torpezas do desenfreio autoritário e a eterna submissão da plebe tem que continuar sendo revolucionário a fortiori, e, conseqüentemente, um perseguido pelas instituições.
Chegando a esta conclusão, chegamos também a este dilema: - Ou os anarquistas ditadores crêem de boa fé na sua influência sobre a humanidade atual para fazer que viva a anarquia, não lhes deixando seu exagerado otimismo ver o atraso mental de nossos contemporâneos para poderem compreender nosso ideal, e muito menos para vivê-lo, fazendo-o carne da sua carne, ou contrariamente, são uns mistificadores, que se adaptam a triunfos efêmeros para viver mais tranqüilos e para fazer, pelo verdadeiro caminho, a felicidade universal.
De duas coisas uma: - Ou seguimos sendo refratários à incompreensão dos de cima e dos de baixo, ou seguimos sendo sonhadores, verdadeiros Quixotes da vida, ou desprezamos as vis realidades, ou seguimos sendo artistas, concebendo belamente a vida em todos os seus aspectos e vivendo-a o melhor possível, de conformidade com o nosso ideal anárquico, - ou, em contrário, devemos declarar a bancarrota do anarquismo e ao mesmo tempo a mesquinhez do nosso eu, que não quer lutar mais que pela finalidade de um triunfo que não pode ser o nosso e o de todos. Sendo assim, é lógico que adotemos uma crença, que lutemos com fé, que nos façamos soldados ou generais da nova causa, porém... poderemos continuar chamando-nos simplesmente anarquistas?
Que cada um medite sobre a transcendência de tal dilema e que cada um encontre sua resposta a tal pergunta...
Que os jovens, principalmente, tratem assim de afirmar sua consciência.

# Por Karis Takos, publicado no periódico “Renovação” (Rio de Janeiro), Março de 1922, Número 5, Ano 1, Página 77.